OPOSIÇÃO ARCAICA

 

MIGUEL REALE

 

 

                                                         O processo democrático, conforme se acha determinado na Constituição de 1988, está condicionado, entre outras, por quatro diretrizes fundamentais: a) a de eticidade, que converteu em princípio constitucional o da moralidade de todos os atos públicos (Art. 37): b) a da livre iniciativa, ao mesmo tempo fundamento da ordem democrática e da ordem econômica (Arts. 1o, IV e 170, IV); c) a do pluralismo político (Art. 1o, V); e d) a da legalidade, da qual deflui que ninguém pode ser privado de sua liberdade e de seus bens sem o devido processo legal (Art. 5o, LIV). São esses os imperativos que devem nortear as decisões e os modos de agir de todos os cidadãos, quer estejam ou não exercendo postos de governo, sendo indispensável, todavia, esclarecer o que se entende por “postos de governo”.

                                                         Há um equívoco, de graves conseqüências, quando se pensa que, em uma democracia, possam ser considerados alheios à função governamental os parlamentares, senadores e deputados, que não componham a maioria, à qual o eleitorado tenha confiado a responsabilidade direta de governar. Com esse entendimento falho cinde-se o Estado em governo e oposição, quando, na realidade, esta compartilha do governo, como polo negativo da vontade popular. A rigor, é aquela revestida de competência direta e esta de competência indireta no exercício do poder político. Denomina-se governo o conjunto das autoridades, do Executivo e do Legislativo, detentoras da responsabilidade direta da gestão da coisa pública, mas não é dito que os membros da oposição – quer na direção dos partidos, quer no exercício de funções públicas – possam ser consideradas irresponsáveis por suas decisões que tenham impedido o governo de realizar seus planos e programas.

                                                         Posta a questão nesses termos, de conformidade com o que a ciência política contemporânea a entende, chegamos a uma nova visão dos direitos e deveres dos parlamentares da oposição, estabelecendo as normas segundo as quais eles devem atuar, a partir da função crítica que implicitamente lhes conferiu o eleitorado. Por outras palavras, a oposição, queira-se ou não, integra o poder nacional, compartilhando da responsabilidade pelos resultados positivos ou negativos alcançados no País, na medida em que ela tenha falhado em sua função crítica, ao se ter oposto às medidas pleiteadas pelo governo como essenciais aos interesses da nação.

                                                         O que estou aqui procurando esclarecer está implícito no entendimento comum de que os representantes da oposição não devem necessariamente votar contra o governo quando estiverem em jogo valores, cuja realização seja de importância fundamental para o País. Objetivos meramente partidários ou corporativos não podem, de maneira alguma, se sobrepor ao bem comum, de tal modo que nada é mais aberrante e arcaico do que a oposição sistemática e a-crítica, ou seja, a atitude adversa e negativista por princípio.

                                                         Infelizmente, no Brasil, os partidos da oposição colocam-se perante o governo como quem toma posição perante uma trincheira inimiga, atirando sempre contra FHC, qualquer que seja o mérito de suas proposições, sem sequer se dar ao trabalho de indagar de sua necessidade para o povo, nele incluída a parte do eleitorado que tenha preferido a legenda oposicionista.

                                                         Essa falta de compreensão de que a oposição também integra o poder político nacional explica o fato de  um líder político, como Lula, tenha podido proclamar que “a oposição não tem o dever de fazer propostas”, quando, na realidade, na vida política, não tem o direito de votar contra uma proposta quem não esteja em condições de oferecer alternativa exeqüível àquela que condena e recusa. Só Mefistófeles tem o poder de sempre dizer não, porque ele é o espírito que nega. Nessa ordem de idéias, nossas agremiações políticas poder-se-iam considerar mefistofélicas...

                                                         A atitude radical da oposição brasileira atinge posições de um ridículo impagável, como se deu quando o Partido dos Trabalhadores – que se considera e se proclama diferente, por ser portador de idéias e programas, – condena pública e duramente um deputado por ter tido a ousadia de comparecer ao Palácio do Planalto, para tomar conhecimento de um projeto presidencial!

                                                         Não menos ridícula é a censura e a proibição dos governadores petistas de participar de reunião promovida pelo Presidente da República para estudo de reforma da Previdência Social, em pontos de interesse tanto para a nação quanto para os Estados.

                                                         Tais procedimentos traduzem uma visão seccionada da democracia, como se pluralismo político significasse divisão de caráter absoluto e contraste intransponível quando, ao contrário, importa em diálogo, troca de idéias e opiniões, visto como, consoante foi exposto, a oposição integra o quadro político do País, a cujos objetivos e necessidade cabe a todos atender.

                                                         Com os assinalados processos, onde e como falar-se em eticidade política, uma vez que esta não se compreende sem um mínimo de compreensão moral e de respeito à pessoa do adversário. Como pensar em liberdade de opinião, conseqüência direta e imediata do poder de iniciativa, “conditio sine qua non” da formulação de um juízo crítico a respeito dos problemas de governo?

                                                         Não há dúvida, por conseguinte, que os mencionados representantes do PT, a pretexto de disciplina partidária, foram atingidos em seus valores ético-políticos, não somente em sua dignidade pessoal mas também nas prerrogativas inerentes às funções por eles exercidas no quadro democrático. No fundo, foi-lhes negada a liberdade de pessoalmente se inteirarem das questões sobre as quais tinham o dever de exercer função crítica, sem ser atendido o devido processo legal admissível na regência de nossas agremiações partidárias.

                                                         Por outro lado, cabe notar que esse estranho comportamento político já nos alerta sobre como seria um governo direto e dominante do PT, com a nação inteira sujeita a regras compulsórias de obediência, impostas em razão dos interesses do partido, confundidos com os interesses gerais do País. Quem não percebe que tais modos de agir, por sua própria natureza, outra coisa não significam senão a instauração do regime totalitário?

                                                         Não deve, porém, causar espanto que se tenha chegado a esses extremos, se recordarmos que, segundo o ensinamento dos líderes teóricos do PT, os princípios deste se distinguiriam dos da social democracia ou da democracia social por se pretender alcançar os ideais sociais com obediência às leis, se possível, mas com recurso à luta armada, se necessário. Sobre essa tese, consulte-se, data venia, meu livro O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias, págs. 4 e seguintes.

 

                                                                                  30/10/99